O LIVRO DA VIDA
A vida de cada pessoa dá um livro, com começo, meio e fim, com uma história única, mas que segue um roteiro comum a todos os seres humanos por sua igual condição de humanos. Quando nascemos, somos um livro em branco já com capa, com título, com o nome do autor, com suas cores e seu número de páginas já definidos, em parte geneticamente, em parte pela consciência que somos antes de habitar o corpo-livro que foi preparado para nós por 9 meses.
As páginas dos nossos primeiros 7 anos de vida não são escritas por nós – neste período não sabemos ainda ler e escrever, nem sabemos que somos os donos da caneta, nem sequer tomamos conhecimento do livro e da história que está sendo escrita. Enquanto estamos explorando, percebendo e catalogando, analisando e definindo o que é e como funciona o mundo em que despertamos ao nascer, outras pessoas escrevem e lêem para nós a nossa história – ou melhor dizendo: descrevem para nós sua versão da nossa história, ou a forma como conseguem perceber o que testemunham dela enquanto estamos vivendo, e a registram em nós. Neste primeiro ciclo de 7 anos somos recebedores de informação, ainda não nos preocupamos em dar a direção ao roteiro do nosso livro-vida, estamos apenas recolhendo os dados que vamos utilizar no momento certo, e sequer pensamos a respeito disso. Somos o prólogo em construção, e são muitas as mãos e as descrições que o constroem.
Nas próximas páginas, no capítulo dos 7 anos até os 13, já sabemos ler e escrever, começamos a pegar esporadicamente a caneta, dar uma corrida de olhos e uma sutil interferida nas páginas anteriores que já foram escritas por outras mãos, rabiscar aqui, desenhar ali, colocar um comentário, criar a partir do sonho e da imaginação o que queremos que seja nossa história, somando isso ao que já está escrito e fazendo algumas modificações. Nosso desejo de ser, de manifestar, de descobrir e entender o mundo que está dentro de nós começa a aflorar, e a partir desse florescer projetamos em nosso livro-vida uma ou muitas histórias sobre como essa criatura interna que descobrimos em nós e começamos a explorar pode ser quando vier à tona – temos apenas uma sensação, mas ainda não temos uma descrição, pois apesar de saber escrever e ter tomado a caneta ainda não nos tornamos proprietários do poder criador de nossas palavras e não somos organizadamente conscientes desta criatura, assim como não temos ainda uma fórmula pronta para criar nossas próprias descrições. Estamos moldando essa fórmula a partir das que recebemos dos co-autores ao nosso redor.
Nos anos seguintes, dos 14 aos 20 anos, tomamos posse realmente da caneta, do livro. Mais senhores de nós mesmos e já familiarizados com a criação de descrições, somamos tudo o que foi escrito pelos outros e tudo o que foi sonhado por nós ao resultado sensorial, emocional e prático da experiência com ambas as coisas, e começamos a impor novos rumos à história do nosso livro. Rabiscamos ainda mais as páginas que foram escritas por mãos alheias, mas isso geralmente só torna mais forte a cicatriz que aquela letra imprimiu nas páginas seguintes; fazemos mais “ajustes” com nossas mãos em todas as páginas até agora já escritas; decidimos a partir de tudo o que já recebemos e de tudo o que já sonhamos quem será, a partir de agora, a criatura que se debate e precisa a qualquer custo sair de dentro de nós (e mesmo que ela seja de fato diferente daquilo que escolhemos, tentaremos de muitas formas adaptá-la ao que determinamos que ela deve ser e escrever uma história conveniente para ela). Sem perceber, estamos quebrando em milhões de estilhaços todas as histórias que foram criadas até aquele momento – por outros ou por nós mesmos, pois ainda não enxergamos a diferença – e permitindo que o horizonte se abra e que o vento nos diga o que mais há para se explorar. Voltamos a ser recebedores de informação, mas agora somos recebedores exigentes, estamos mais conscientes da nossa condição de exploradores, embora no fundo acreditemos que já somos criadores, geradores independentes e impermeáveis àquilo que vem de fora a não ser quando concordamos – mas infelizmente isso não é um fato, e escrevemos irresponsavelmente, até mesmo tiranicamente, com a gana de quem descobre seu imenso poder de criar, com absoluta certeza e um traço tão forte e tão determinado que marca profundamente muitas das próximas páginas em branco...
O próximo capítulo vai dos 21 aos 29 anos, e nele começamos a reavaliar os capítulos anteriores com uma bagagem muito maior – temos a participação de algumas ou de muitas pessoas, temos nossa própria participação de muitas formas, começamos a reconhecer nosso determinismo em direcionar inconseqüentemente aquela criatura lá de dentro em um caminho que era para nós desconhecido e que agora já deixou de ser. Agora sim, nos tornamos gradualmente menos permeáveis e mais seletivos e, revendo tudo o que já escrevemos, somos cada vez mais capazes de detectar cada espasmo de lucidez e de loucura que tivemos ao empunhar a caneta, começamos a reparar que escrever muitas vezes torna-se difícil, pois as páginas novas estão com relevos e depressões, marcas, cicatrizes deixadas pela paixão determinada com que esprememos a caneta, e que essas marcas demoram-se em muitas páginas seguidas até sumirem. Ficamos mais cautelosos com nossa forma de escrever, tanto quanto com nossa fórmula de descrever. Notamos que estamos precisando de uma profunda respiração antes de cada linha, relendo, repensando, e tomando cuidado para não apertar demais a caneta – mesmo que não façamos nada disso. Começamos a entender a utilidade da tinta corretiva, e vamos borrando aqui e ali, selecionando o que fica ou o que sai do nosso livro. Nessa tarefa, apagamos coisas que não deveríamos também, pois o bom senso ainda não é nossa ferramenta principal. Estamos agora juntando ferramentas de escrita para o futuro – já temos o corretivo, vamos descobrir o mata-borrão, o papelão que pode ser colocado entre as páginas para não machucar as páginas futuras, o índice de páginas e capítulos para consulta no final do livro, o dicionário para encontrar novos significados, a régua, o compasso, os lápis coloridos... Nesse período conheceremos e agruparemos as ferramentas que nos permitirão, um dia, reorganizar completamente a nossa história, e descobriremos essas ferramentas percebendo tudo o que estivemos escrevendo até agora e quantos erros cometemos por impulso, por ignorância, por falta de ferramentas, por rabiscar com muita força, por não dar atenção ao roteiro, por querer direcionar impositivamente a criatura interna aprisionando-a a uma forma que não é sua ao invés de libertá-la, por não assumir a autoria das linhas escritas, ou simplesmente por não ter escrito nada e ter deixado que as letras aparecessem por si, vindas de qualquer outra mão. E no final deste capítulo, encerramos a primeira parte do nosso livro. O período em que nos preparamos para sermos autores da nossa história acabou. Agora o livro é nosso, a caneta é nossa e temos muitas outras ferramentas, a história é nossa, e sabemos disso – não só sabemos como assumimos, totalmente conscientes, a responsabilidade sobre isso ao final deste tomo. Mas acreditamos tão completamente em nossas experiências acumuladas com nossas histórias que subestimamos aquilo que ainda não sabemos sobre nós mesmos.
Na segunda parte do livro, que começa aos 30 anos, descobrimos quem, de fato, é o tal do autor. Quem é essa criatura aqui dentro, que não corresponde ao que achei que ela era? Que não muda para o que acredito que seja conveniente que ela seja? Que não se afina com nada do que me dizem sobre ela? Quem, de fato, mora neste corpo e vive esta vida que eu vim escrevendo até agora dividindo a caneta com tantas mãos, reutilizando tantas descrições e reaproveitando tantas histórias alheias? Até os 39 anos, vamos aprender sobre o autor do livro, olhar para ele, permitir que ele se expresse e se manifeste mesmo que seja só no nosso ouvido, percebê-lo, e aos poucos ir virando as páginas marcadas até que as marcas sejam menos profundas. É claro que haverão muitas ainda, assim como haverão muitas vozes soprando histórias e descrições em nosso ouvido, muitas mãos querendo escrever em nosso livro, e sim, em alguns momentos ainda permitiremos que tudo isso aconteça e que novas marcas sejam feitas por nossas e por outras mãos, afinal ainda não estamos seguros sobre o que a criatura, o autor, seja ou queira ou possa fazer com nossa história, com nossos sonhos, conosco. O autor é uma possibilidade, um vulto imprevisível que às vezes nos intimida, nos contraria e nos provoca e que descobrimos aos poucos, que abrimos devagar, e que aos poucos e devagar vamos livrando de uma ou outra cicatriz se já soubermos qual a ferramenta certa e como usá-la. Este é o capítulo em que o autor fala conosco e podemos ouvi-lo com mais nitidez.
No capítulo que vai até os 49 anos, começamos a libertar o autor do confinamento em que esteve até agora. Ele se torna mais audacioso à medida que ficamos cansados de brigar. Descobrimos o quanto ele é forte e o quanto as histórias que viemos defendendo são frágeis diante de sua integridade. Já não há tantas coisas pelas quais vale a pena o esforço de lutar contra ele, afinal testamos e reinventamos tantos roteiros e tantos personagens para essa história, e tudo o que pudemos perceber é que pouco do que escrevemos foi verdadeiramente válido, poucas foram as histórias que contamos com felicidade e muitas as que contamos com esforço inútil e tristeza. Não estamos mais dispostos a passar pelo desnecessário em nome de ideais que não foram acrescentados ao livro por nossas mãos; queremos que a vida-história exija menos sacrifícios e tenha mais emoções. Precisamos agora aproveitar toda a experiência interna e externa que já acumulamos a fim de determinar menos e apreciar mais. É a proposta que temos agora para nossa história, e o autor começa então a se revelar aqui e ali, na frente de qualquer um e em qualquer lugar, mostrando-nos pouco a pouco que é quando nos permitimos soltar as rédeas imaginárias que temos sobre ele que conseguimos escrever a história que nos gratifica. Vamos aprendendo a agradecer pelos momentos em que ele foge e passeia entre as pessoas, dança, canta, escreve coisas vexaminosas que jamais teríamos a cara-de-pau de escrever. Mas, infelizmente, não é o tempo todo ainda que ele descobre um vãozinho, uma fresta que possa atravessar entre as capas duras que viemos sobrepondo ao longo dos anos e dos inúmeros desgastes. E algumas vezes ainda nos recusamos a levar em consideração a história que ele quer nos contar... E algumas vezes ainda nos pegamos espremendo a caneta para impor a ele a nossa vontade deixando profundas marcas para o futuro... E algumas vezes ainda entregamos a caneta a algumas das pessoas em quem confiamos tanto a ponto de permitir que interfiram na nossa história.
A partir dos 50 anos estamos escrevendo o último capítulo, e sabemos disso. E saber disso traz duas sensações: a gratidão por ter escrito tanto e a pressa de terminar a história pelas mãos do autor verdadeiro, pois não sabemos quantas páginas ainda poderemos preencher. E isso nos leva a ir pouco a pouco parando com tudo – paramos de espremer a caneta demais, pois isso gasta demasiada quantidade de energia, e temos que economizar para o que realmente importa. Paramos de gerar cicatrizes nas páginas em branco, elas precisam ser lisas para acolher a letra mais bonita, menos afobada, quase artística, que desenvolvemos, e já é o bastante ter de ir deixando para trás, página por página, as cicatrizes do passado. Paramos de entregar a caneta para os outros, eles já escrevem seu próprio livro, já escreveram demais no nosso livro, e o autor esteve de fora por tempo demais para que os co-autores fizessem tamanha bagunça... Paramos de reaproveitar a história dos outros. Não precisamos mais copiar para de ninguém para nos sentirmos seguros, a segurança deixou de ser importante. Paramos de usar as fórmulas de descrição alheias, elas foram criadas para outros enredos. Paramos de segurar a mão do autor sobre a caneta... E deixamos que ela deslize. Pouco a pouco, claro, mas tudo o que queremos é que ela deslize suavemente, e imprima seu traço leve. Abrimos todas as portas e jogamos fora cada chave. Ele entra e sai quando quer. Estamos velhos, exaustos, mas ele ainda é jovem, tem a energia de uma criança... É bem mais fácil deixar todo o trabalho para ele. Ele sabe o que faz, mais do que nós. Tiramos férias eternas do cargo de roteirista, pedimos demissão do cargo de escrivão, abandonamos o ofício de controladores. Agora o autor faz tudo como quer, e voltamos a ser recebedores de informação: Recebemos a história que ele escreve, do jeito que ele escreve, e choramos e rimos e dançamos e cantamos a história dele. Não leremos nada disso, não saberemos qual era o roteiro e que tipo de fórmula de descrição ele utilizou, e não importa; essa é a experiência dos nossos leitores. Vivemos a história e deixamos o livro para os novos autores que virão. Se conseguirmos aprender com o autor dentro de nós, nos tornamos sábios o suficiente para ensinar, antes do fim do livro, um pouco sobre a arte de ser autor de si mesmo. E, no fim, é claro, o autor esteve presente o tempo todo, em todos os capítulos, e percebemos isso nitidamente quando olhamos para qualquer página em qualquer parte do livro: ele se fez sentir, mais forte ainda quando o negamos, naquilo que estávamos negando; ele se fez ouvir, mesmo quando pelo seu silêncio... e o fato de ter estado ali para nos permitir tudo e se permitir tudo é, por si só, sua obra-prima.
ABENÇOADOS SEJAM!
Corvo Negro
(Lara Félix)


