O SABER ANCESTRAL
O que é o Saber Ancestral? Como já disse numa das minhas publicações, o resgate da ancestralidade vai até nossas raízes, mas começa pelos galhos mais próximos ao fruto. O saber ancestral vai desde as nuances perdidas do modo de vida dos nossos avós até o mais remoto conhecimento tribal acumulado pelo ser humano em suas primeiras descobertas sobre o mundo que o cercava. Vai dos remédios verdes da vovó e dos costumes hospitaleiros do vovô às pinturas rupestres encenando a sacralidade da caça. Sequer percebemos quanto a geração dos nossos pais, vivendo a revolução das máquinas e da quebra de cultura, criou um mundo tão diferente do mundo dos seus pais em apenas uma geração, mas basta entrar numa dessas cidadezinhas perdidas no interior de qualquer lugar para perceber que todos os valores e comportamentos são diferentes dos nossos, não importa quanto a tecnologia tenha entrado lá.
É uma grande ilusão querer viver da mesma forma como nossos ancestrais viviam a milhares de anos atrás, pois não descobrimos apenas as máquinas, o desperdício, o consumismo e uma vida mecânica, mas também formas de comunicação que superam distâncias gigantescas em segundos, meios de divulgação de informação por onde quase qualquer pessoa tem acesso a tudo o que há para se saber; conquistamos uma diversidade que nos permite sermos hindus na Espanha ou aborígenes australianos no Japão, ou então nos deslocarmos pela superfície do planeta em poucas horas de um extremo a outro pelo ar. Há que se resgatar o que se perdeu de bom, há que se manter o que se conquistou de bom, há que se abandonar os atropelos e falhas do passado e do presente tornando o tempo, também, algo acessível e modelável através da união entre Saber Ancestral e Conhecimento Atual.
Vejo a grande sabedoria dos Antigos manifestar-se com igual riqueza e beleza nos olhos, nas palavras e nas atitudes do matuto, do caipira, do mateiro. Sobreviventes da geração dos meus avós, seu modo de vida se parece mais com os modos tribais do que com os meus. Eles usam computadores, celulares, GPS, assistem TV, e em nada se parecem com as pessoas do formigueiro urbano em seus valores, crenças, costumes, em seu modo de vida e seu saber. Aprendi mais sobre a Sabedoria natural e sobre o Xamanismo prático (no cotidiano) com eles do que com qualquer especialista em “sociedades antigas” e “cultura tribal” – estes só me mostraram quanto os “tiozinhos” da roça estão tão próximos dos conceitos e práticas ancestrais. Comecei meu próprio resgate de Saber trazendo de volta os ensinamentos, os valores e o modo de vida dos meus avós, e indo cada vez mais para trás no tempo, até chegar no tempo em que as cavernas, lugares sagrados, eram decoradas nas datas especiais pelo registro de mais uma lição a ser passada para as próximas gerações. Deixo nessa página os principais ensinamentos que encontrei, ensinamentos que não são sobre “rituais xamânicos”, mas sobre “vida xamânica”. É o saber da "vida xamânica" que quero compartilhar, pois sobre os rituais xamânicos e tradições xamânicas, creio que já haja o suficiente.

MITAKUYE OYASIN - Por todas as nossas relações

Ou “eu sou aparentado com tudo o que existe”, na língua dos Lakota. Para as tribos Tupis, Anauê, “eu sou seu irmão”. Há uma frase/saudação equivalente a essa em todas as culturas, menos na cultura do homem branco contemporâneo. Ao contrário dos nossos ancestrais, que viam a ligação entre todos e entre tudo o que existe, tornando cada um parte única e fundamental de seu contexto, e que buscavam a harmonia em todas as suas relações em prol da harmonia coletiva e da harmonia consigo mesmo, nós nos sentimos separados de todos e do Todo, e buscamos no isolamento superar a idéia de inferioridade trocando-a pela sensação de superioridade através daquilo que somos capazes de ter ou de destruir. Esta é a razão pela qual nosso sistema de valores, crenças e organização social desequilibra tudo ao seu redor e não nos satisfaz: porque ao invés de unir, interligar, valorizar e incentivar, ele separa, desliga, inferioriza e reprime.
Para os povos antigos, a existência são os fios de uma imensa Teia Universal, que se cruzam, e que estão interligados entre si, não importando se estão em lados opostos ou em extremidades, pois o centro de onde partem todos os fios torna a Teia um só Todo, que vibra em sua totalidade ao mais leve toque em qualquer dos seus fios. Isso cria uma relação de respeito entre todos os seres, onde tudo deve ser tocado com delicadeza, pois romper ou danificar um fio repercute em toda a Teia, e repercute em si mesmo. Não existe “o problema do outro”, um fio com problemas é um problema da Teia.
Assim também não existe “o problema do lago poluído”, pois a natureza é um conjunto de vidas que vai dos liquens do lago ao dono do terreno, passando pelos sapos, insetos e mamíferos que ali vivem e bebem, pela terra que vai sorver a sujeira junto com a água, pelos alimentos que esta mesma terra vai nutrir e pelos que serão alimentados com eles – levamos 100 anos para perceber isso, exigimos que fosse cientificamente comprovado através de inúmeros testes que é assim que acontece, e ainda estamos refletindo e analisando sobre o direito ou não de continuar sujando o lago. Não vemos a Teia, mas isso não significa que ela não esteja aqui, agora. Não estamos separados do lago poluído, pouco importa que ele esteja do lado oposto do planeta em relação a nós.
Assim também não estamos separados das guerras que acontecem em outro continente. O mesmo valor dado à vida humana em qualquer guerra, massacre ou forma de exclusão é o valor dado a nós pelos “outros” e é o valor dado aos “outros” por nós, bem como o valor que damos a nós mesmos. Se não há uma teia que liga a miséria da África à guerra do Oriente Médio e ambos a você, de forma que isso não é problema seu, é porque também não há uma teia que liga tantos outros a você, e você não será problema deles quando a separação estiver voltando-se em sua direção. Esta é nossa forma de encarar a existência na atualidade – como se não houvesse a Teia. Precisamos nos lembrar que há uma Teia. Há uma Avó Aranha, que a teceu e continua fazendo os reparos, e há o “além da Teia”, um Universo maior do que ela, mais velho do que a própria Aranha, em que o nosso planeta é também, por sua vez, um fio na Teia...
OS FIOS DA TEIA
Na língua Tupi, “Tu” significa som, vibração, alma, freqüência. Tupã – Grande Som, o Som Universal. Tupi – Som em pé, o homem. Somos sons, vibrações, freqüências que se ergueram e ficaram em pé (como diz a teoria evolucionista), almas únicas, notas do Grande Som. Afinados ou desafinados, somos cordas de um mesmo instrumento, vibrando juntas. A Grande Teia é um instrumento musical, feito de muitos fios, fios que vibram, e vibram o som de cada um dos seres que foram ali colocados como notas da música universal. O Universo é a mais mágica matemática, detalhadamente perfeita, calculada pelo Grande Som que partiu do centro da teia espalhando as inúmeras notas de sua sinfonia em incontáveis fiozinhos que se interligam.
Viemos ao mundo para ser quem somos. Estamos ancorando neste plano de existência uma freqüência única com a única e exclusiva função de ser quem ela é nos caminhos por onde passar, pois seja onde for estará completando a freqüência daquele lugar, naquele momento, com sua presença, e completando a Teia e a música ao seu redor. Assim, fomos feitos seres individuais, com pequenas semelhanças em suas nuances e sem comparação em nossa integralidade. Cada um é o fio que precisa estar na Teia no lugar onde está, no momento em que acontece sua experiência de vida, para cada encontro e situação que ela proporciona. Assim, o Saber Ancestral deixava cada um em seu espaço de liberdade para reconhecer-se e expressar-se, contribuindo com sua parte para a harmonia e plenitude do conjunto. Diferentemente do que vivemos hoje – a socialização, que nos impõe padrões que devemos atender para sermos aceitos: não apenas padrões externos como padrões de beleza, comportamento, expressão, aquisição, mas de elementos internos e íntimos como sonhos, ideais, desejos. Padrões que comprimem as infinitas possibilidades criativas do Grande Espírito (ou Grande Som) em uma única pessoa, chamada “normal”. Isso é um massacre ao Ser Criado e um desrespeito ao Ser Criador e à Teia da Vida como um todo, que enfraquece se vê empobrecida. É como tentar tocar música num piano com uma só tecla. O resgate do Saber Ancestral é um caminho que conduz ao resgate de si mesmo. Resgatar nossa essência selvagem (a essência banida pela domesticação social) é restaurar não apenas nossa integridade e retomar as rédeas do nosso destino, mas também um ato de reverência ao Todo a que pertencemos, que ajuda na regeneração desse Todo através da afinação de cada um dos fios da Teia; fios esses que precisam vibrar sua própria freqüência para que a música Universal chegue à Harmonia. Quando pensamos em “equilíbrio planetário” e “harmonia universal”, isso soa como uma tarefa titânica, impossível de realizar. Esquecemos que o equilíbrio planetário e a harmonia universal não são metas, pois são fenômenos que acontecem espontaneamente a partir do equilíbrio individual e da harmonia interna de cada ser. A meta é afinar o fio de nossas vidas, o fio que passa pelo nosso centro e nos mantém em nosso próprio verdadeiro eixo, alinhados e afinados com o que somos, capazes de dar o que possuímos e receber o que não possuímos tornando equilibradas todas as nossas relações. Se cada movimento individual repercute em toda a Grande Teia, isso certamente repercutirá. O som de uma só nota harmônica vibrará em muitos outros fios, tocando-os profundamente, chamando-os ao reencontro de seu eixo para despertar seu Som verdadeiro.
Quando as pessoas me perguntam como se faz para receber um nome xamânico, digo a elas que não se recebe um nome, se encontra um nome, quando se reconhece, se aceita e incorpora seu Som e a freqüência que ele expressa.


VIDA XAMÂNICA

Todos os rituais e tradições espalhados pelo mundo nos conduzem a um mesmo ponto. Todos eles nos levam ao encontro desse fio que nos transpassa, esse eixo que nos alinha ao que somos e afina nosso Som, fazendo-nos participar do alinhamento de todos os outros seres através da onda de freqüência que transmitimos. Encontrar nosso eixo e expressar nossa vibração própria e única é o princípio da transformação de todas as nossas relações. A forma como nos relacionamos conosco é a primeira transformação necessária para que nossa vida se transforme e para que o Todo um dia se transforme. Em meio às exigências sociais e pessoais cotidianas, em meio ao enorme tsunami cultural que nos arrasta e que nos parece a única via possível, quem parte em busca de si mesmo encontra uma gigantesca montanha de regras, rótulos e padrões para jogar fora ao procurar-se sob os escombros de sua cultura social e familiar, sem saber o que será sem isso, sem saber como poderá transitar pelo mundo sem as máscaras que o tornam invisível criando um espaço de falsa segurança onde pode se passar por uma pessoa “comum” – um dos produtos da linha de produção. Isso é coragem. Coragem não é aceitar mansamente uma vida limitada e suportar a asfixia, a insatisfação e o sofrimento que ela causa custe o que custar. Coragem é dar o salto para fora das ilusões de segurança, separação e uniformidade e aceitar a inevitável felicidade que virá junto com a interminável sucessão de desafios que torna a vida uma aventura que vale a pena, recheada de emoções reais, vivida por uma pessoa real: você! Ser inteiro exige muita coragem. Estar em paz exige muita coragem. Encontrar seu Som e afinar seu instrumento diante de tantos ouvidos críticos exige muita coragem. Mas muda tudo ao nosso redor. Quando conseguimos encontrar nosso Som, afinar nosso Som, expressar nosso Som, nossa relação com o Eu Interno muda, e passa a modificar nossa vida parte a parte, transformando a relação com o outro, com os animais, os vegetais, os minerais e o próprio planeta, com toda a Teia.
Sabemos que estamos descontentes, sabemos que as coisas precisam mudar e sabemos o que precisa mudar. Sabemos que muito daquilo em que passamos a vida toda acreditando não é real. Sabemos muita coisa. Mas saber não é viver, e “vida xamânica” é transcender o pensamento e colocar os saberes em prática. Temos muitas razões para isso, não nos falta motivação para isso. Ficamos indignados com tudo o que nos rodeia o tempo todo, nos indignamos com as coisas que acontecem dentro e fora de nós ao longo da vida. E por que nos limitamos ao saber e não saltamos para o viver? Porque isso exige coragem. Aprendemos a acreditar que o medo é real e a valorizar o medo como forma de nos manter em segurança. Mas o medo não é real. O medo é nossa mente projetando um possível futuro aterrorizante baseado em tudo aquilo que sabemos não ser real. E coragem? O que é coragem? Coragem é parar diante do medo, respirar lentamente olhando para ele, desligar-se da projeção de futuro e sentir o momento presente – o momento em que podemos escolher qual é a base de construção das nossas projeções para o futuro: as ilusões que assimilamos ao longo da vida e sabemos não serem reais ou as verdades que sonhamos ver realizadas do fundo do coração. A “vida xamânica” não pede que tenhamos um profundo conhecimento de rituais e tradições, não pede que dispensemos nosso tempo a aprender ou ensinar ou celebrar ritos antigos, não pede que sejamos todos xamãs. A “vida xamânica” nos pede um momento de coragem para tomar a decisão de construir nosso próprio mundo com nossas próprias crenças e tomar o fôlego para o salto de viver de acordo com elas. A “vida xamânica” pede que encontremos nosso Som, que aceitemos e afinemos nosso Som e permitamos que ele vibre livremente em todas as direções. Ela pede que sejamos a própria expressão do objetivo dos ritos e tradições xamânicas: o encontro do Ser-Som que toca com delicadeza e ressoa em todos os corações.
Àqueles que são capazes de tentar, eu agradeço.
Mitakuye Oyasin (por todas as nossas relações) pois Anauê (eu sou seu irmão).