O SAGRADO FEMININO
A Terra tem seus ciclos. Não apenas os ciclos sazonais, mas os ciclos energéticos e os ciclos de consciência. Se há alguns milênios vivemos um período patriarcal, não é simplesmente porque o ser humano assim o escolheu. O ser humano escolheu a deturpação dos princípios masculino e feminino que o conduziu ao machismo que hoje conhecemos, mas não o ciclo masculino, ele faz parte dos ciclos energéticos e conscienciais pelos quais passa o planeta, influindo nas consciências que nele habitam para impulsionar o desenvolvimento através de sua própria diversidade. Se ouvirmos a narrativa dos povos antigos, perceberemos que essa mudança do ciclo feminino para o ciclo masculino aconteceu globalmente em todas as culturas, paralelamente em povos que não se interligavam cultural ou geograficamente. Veremos que ocorreu quase ao mesmo tempo na Europa e na tribo Javaé, por exemplo. E neste ciclo masculino pelo qual ainda estamos passando, a deturpação do que é feminino e masculino através de conceitos e valores desenvolvidos pelo ser humano nos fez não apenas abandonar, mas também oprimir e execrar os valores e conceitos ligados à energia feminina. Tivemos grande desenvolvimento científico e tecnológico e grande paralisação espiritual e distanciamento da natureza interior e exterior. E isso gerou todo o caos que conhecemos: guerras desumanas, desigualdade, destruição do meio ambiente, desligamento entre os seres, afastamento do ser humano de seu próprio self. Não por este ser um ciclo masculino, mas por termos distorcido o significado de masculino e, principalmente, por termos banido por completo a energia feminina do nosso cotidiano, pois apesar dos ciclos alternarem a energia dominante, certamente isso não significa que seu oposto e complementar deveria ser eliminado, pois assim não há equilíbrio.
A cura individual e social para a humanidade vem através do resgate do feminino, e é impossível falar de resgate do feminino sem mencionar o resgate do masculino, pois o masculino que hoje conhecemos não é o verdadeiro, e por isso o resgate do feminino vem antes – para conduzir-se a si mesmo de volta à naturalidade e, assim, conduzir também o masculino no caminho de retorno à naturalidade. Mesmo com toda a distorção que fizemos (e é nossa responsabilidade coletiva como espécie, independente de gênero, desfazê-la), ainda são as mulheres as educadoras das futuras gerações e ainda são as mulheres as maiores portadoras do canal de contato com a Sabedoria da Origem. Resgatar a essência feminina, resgatar a liberdade, resgatar a autonomia, resgatar o selvagem, é rumar a um novo elo com a Sabedoria da Origem, que ajusta, equilibra e harmoniza as polaridades dentro de cada um e no Todo e ensina a caminhar para o equilíbrio planetário das polaridades. Quem sabe cheguemos um dia a um ciclo igualitário – acredito que ele deve existir também – e possamos vivê-lo com o verdadeiro masculino e o verdadeiro feminino plenos, dentro e fora de nós. Mas, para que isso aconteça, precisamos começar neste ciclo masculino a cura das distorções que fizemos e de seus efeitos nocivos em nosso ser, pois uma simples mudança de ciclo não resolverá por si só essa questão, que diz respeito a nossas escolhas. Não que esteja transferindo todo o trabalho para as mulheres, pelo contrário, estou transferindo a elas a prioridade, pois sua naturalidade é justamente o que falta a este ciclo tão conturbado. E, por ser o feminino tão receptível e elástico, é que ao nos adaptarmos e vivermos o machismo deste ciclo é que estamos nele introduzindo a presença do feminino, gradualmente, e gerando uma grande onda de interesse pelo desenvolvimento humano, pela quebra dos padrões, pela reconexão com a Mãe Terra, pela ressurreição do respeito a todas as formas de vida e de uma nova forma de experimentar todas as nossas relações enquanto Teia, que vem tocando cada vez mais pessoas, homens e mulheres, homens-mulheres e mulheres-homens.
Mas, primeiro vem o feminino, depois o Sagrado Feminino. Não podemos atropelar o processo. Querer chegar primeiro ao Sagrado significa que ainda vemos a energia masculina e feminina como algo distante de nós, do lado de fora, e conseqüentemente só poderemos contemplar à distância, sem que isso nos afete. Primeiro encontramos masculino e feminino dentro de nós, despertamos suas essências, reconhecemos suas dádivas, sua utilidade, aceitamos nossa feminilidade e masculinidade únicas, e depois vamos em busca de algo que une, interliga, abençoa e toca a cada uma dessas peças ímpares que somos, aprendendo a honrar o Sagrado em nós para poder honrar o Sagrado no outro. Mas não há como reconhecer e honrar sem permitir, antes, a manifestação para que haja o reconhecimento. Não há meio de celebrar os ciclos da Terra sem celebrar nossos próprios ciclos, e não há meio de celebrar nossos ciclos se não nos alegramos com o que eles vêm nos trazer, pois celebrar é comemorar, é agradecer. Não há um meio de agradecer sem receber e experimentar. Estamos presos a muitos rótulos, padrões e expectativas que não nos permitem experimentar. Tudo o que nossa imensa diversidade humana conhece é uma forma única que “tem que” ser usada por todos, agradando ou não. A nossa Criança curiosa, que se diverte explorando, experimentando, está sendo reprimida; e com ela nossa criatividade, nossa espontaneidade, imaginação, nosso prazer de viver, nossa capacidade de entrega. É isso o que faz o machismo, torce o feminino e o masculino robotizando-os e reafirmando que a vida é feita apenas de dureza, seriedade e obediência e que para vivê-la é necessário submeter-se ao objetivo, ao pragmático, ao seguro, ao previsível. Por isso é tão fundamental que o feminino seja oprimido: porque para sustentar tais “verdades” não pode haver a prática e a valorização do subjetivo, do imprevisível, do flexível, do divino. A vida não pode ser vista como uma aventura ou uma brincadeira na qual nos divertimos, crescemos e somos felizes, ela tem que ser um suplício cheio de sacrifícios e dureza. Tudo o que conhecemos no cotidiano como machismo são sintomas disso, que se apresentam em cada milímetro de nossos hábitos e valores, tão fortemente que mal podemos identificar. Mas o feminino se adapta e ressurge. E ele vem se instalando há um certo tempo, de mansinho. Que bom que estamos vivenciando esta suave invasão; mas para que ela seja produtiva e não apenas uma revolta “antimachista”, temos que nos libertar das distorções e dos rótulos – um feminino presente e distorcido não é melhor do que um masculino presente e distorcido, é apenas uma nova forma de distorção. Até por isso dedico minhas atividades ao resgate do feminino, nesta ordem: Resgate interior e depois resgate do Sagrado, primeiro tocamos com leveza e precisão no ponto sensível do nosso coração, das emoções, percepções, valores; depois buscamos o conhecimento do Sagrado e nos reconhecemos nele e o reconhecemos em nós, honrando-o em tudo.

AYABÁS – AS SENHORAS, NA ÁFRICA E NO MUNDO

Yabá (ou Ayabá) significa Senhora, Rainha, Mãe. O Sagrado Feminino se expressa, nas nações da África, através dos múltiplos aspectos femininos manifestados nas Orixás. Muito longe do nosso modelo de “divindade”, que parte do princípio da negação de tudo o que não é submisso e servil, passivo e cordial (como se a palavra “divino” se relacionasse apenas a um aspecto da totalidade do Poder Criador), e mais longe ainda dos estereótipos que hoje possuímos sobre o que é ser mulher e sobre o que é “feminino”, elas são, principalmente, Guerreiras. Sábias, ardilosas, amáveis, venenosas, fortes, frágeis, inteligentes, passionais, maternais ou não, são Rainhas. São Senhoras. Rainhas e Senhoras de quê? De si mesmas e de seu poder. São plenas em suas manifestações contrárias e complementares, na incorporação mais absoluta e consciente do Yin/Yang que habita todos os seres. São puras e selvagens. Essa era a antiga visão do feminino, que o tornava tão sagrado para os antigos povos. Entre os Vikings, a última sociedade igualitária da humanidade, o exemplo mais forte do Poder Feminino eram as Valkyrias, comandadas pela deusa Freyja – Mulheres guerreiras, que escolhiam os melhores guerreiros (e guerreiras, pois as mulheres Vikings lutavam, se assim quisessem) do campo de batalha, determinavam quem morreria ou viveria, definiam o resultado das guerras, e cuja descida dos céus causava a Aurora Boreal, um espetáculo de rara beleza, tão delicado quanto a própria Luz. Puras e selvagens. Na Grécia, as Amazonas, mulheres independentes, com leis e território próprios, guerreiras temidas e desejadas. Subversivas, puras e selvagens. Na América do Sul, as Icamiabas (mulheres sem homens) que, confundidas com as Amazonas da Grécia pela similaridade dos seus costumes, inspiraram o nome do Rio Amazonas. Conta a tradição oral que existiam cerca de setenta tribos Icamiabas, e que elas só visitavam os homens em épocas propícias para a reprodução, entregando os meninos que nasciam ao pai e ficando com as meninas, cujo pai recebia de presente um Muiraquitã (talismã de pedra verde em forma de sapo, para trazer sorte e proteção, como forma de agradecer). Conta-se que as Icamiabas confrontaram os espanhóis em uma batalha violenta. Puras e selvagens. Mas não apenas as mulheres-guerreiras solitárias são puras e selvagens. Exemplos mais densos e grandiosos, as Ayabás/Yabás amaram, se casaram, tiveram filhos; foram mães, avós e amantes, traíram e foram traídas, e jamais perderam sua pureza e seu espírito selvagem. Cito tantas outras aqui para que possamos compreender que todo o nosso planeta, em outro ciclo, teve arquétipos-mulheres essencialmente diferentes de tudo o que hoje pauta o ser feminino. Contrariamos a própria natureza e a própria sabedoria humana com os moldes que inventamos para distorcer a feminilidade e a masculinidade. Quem ainda não ouviu a frase “quer um cão bravo, adote uma fêmea”? Quem nunca associou a fúria de uma mãe com a fúria da leoa? Quem nunca ouviu dizer que a fulana “caça como uma loba” ou é “forte como um tufão”, ou “feroz como uma tigresa”, ou “está com a macaca” por ser fogosa? Nenhuma associação entre uma mulher e qualquer outra referência da natureza diz respeito aos atributos modernos do feminino: docilidade, fraqueza, submissão, incapacidade, recato, impotência, dependência, ingenuidade, falta de inteligência, ausência de libido. Porque não há, no feminino natural e selvagem, tais atributos, e assim nossos ancestrais não cultivavam tais valores como virtudes do feminino. As virtudes consideradas atributos do feminino eram a sabedoria, a astúcia, a força interior, a ousadia, a entrega, a malícia, a espontaneidade, a coragem, a flexibilidade, a versatilidade, a profundidade, a intuitividade. Que grande perda, a perda desses valores como referência; que troca injusta pelos valores hoje aplicados à mulher. Mas basta sabermos: em essência, em nosso âmago, também somos, ainda somos Ayabás. O masculino não está fora de nós, nem o feminino está abaixo dele. Cada um de nós tem a dose necessária do Todo em seu Som único e incomparável, e a porção feminina do Som-Ser é admirável. Se nos lembrarmos disso, se nos permitirmos isso, a Cura do feminino estará acontecendo através de nós.